Ronnie Cord – Rua Augusta (1964)
Nas resenhas anteriores, sobre os discos Ronnie Von (1967) e Paulo Sérgio (1968), dediquei algumas linhas ao esclarecimento (sempre necessário!) de que a Jovem Guarda não se inicia com o programa televisivo (1965), especialmente pelo fato de que, pelo menos desde o fim de 1963, já parecia muito claro aos empresários da indústria fonográfica brasileira que esse tal de “iê iê iê” não era coisa que ficaria circunscrita à gringa, mas um fenômeno que, dentro em pouco, também chegaria do lado de cá.
Isso ficou especialmente claro com a “British invation”, liderada pelo Beatles em 1964, e só pessoas muito desinformadas acreditariam que uma aposta tão alta poderia teria sido feita pelos idealizadores, produtores e, sobretudo, patrocinadores do programa, sem que tivessem garantias mínimas de retorno financeiro.
Noutras palavras, bem ao contrário do que muitos pensam, nem a Jovem Guarda foi um movimento criado instantaneamente, a pretexto de montar o cast do programa; nem o programa Jovem Guarda foi um tiro no escuro, mas um projeto resultante de um estudo de viabilidade, que levou em conta as inclinações do mercado e revelou que, a partir de 1964, haveria uma grande mudança na indústria, fundamentada na beatlemania.
No caso específico do Brasil, já havia indícios claros, desde os precursores do movimento, ainda oriundos da leva de fins dos anos 50 para início dos 60 (Bolão e Seu Conjunto, Betinho e seu conjunto, Sérgio Murilo, Celly Campelo, Tony Campelo, Reynaldo Rayol, Carlos Gonzaga etc.), de que esse tal de “rock” era um bom investimento.
Mas, certamente, existem alguns marcos que nos permitem reconstituir com mais objetividade o percurso que nos leva desses precursores em direção à Jovem Guarda, propriamente dita. Vejamos, então.
A primeira sinalização positiva à indústria foi, segundo me parece, a colocação inédita que a chamada “música jovem” alcançou no hit parade do ano de 1963, emplacando três músicas entre as dez mais: “Splish Splash” (a mais bem colocada), versão de Erasmo Carlos, que Roberto Carlos gravou em seu 2º LP e o ajudou, finalmente, a deslanchar a carreira; “Boogie do bebê”, de Tony Campello; e “Filme triste”, do Trio Esperança.
Porém, a surpresa aumentou quando outra versão, desta vez feita e gravada por Demétrius para “Rhythm of the rain”, do grupo The Cascades, e conhecida, cá entre nós, como “Ritmo da chuva”, alcançou, nesse mesmo ano, o primeiríssimo lugar!
Depois de tantas demonstrações, faltava apenas a prova definitiva de que o “iê iê iê” viera para ficar, mas não apenas adaptando sucessos já assimilados pelo público norte-americano ou europeu (através de versões), e, sim, investindo em composições originais, de lavra genuinamente nacional. E foi justamente nessa ocasião que, em março de 1964, o experiente Hervé Cordovil compôs a música “Rua Augusta”, passou-a a seu filho, e este garantiu que, em questão de dias, esse roquinho despretensioso chegasse ao topo das paradas! O nome desse cantor? Ele mesmo: Ronnie Cord.
A partir desse marco (que me parece ser, de fato, o original), a coisa ganharia cada vez mais vulto, invadindo estúdios, lares e corações, por, pelo menos, mais quatro anos. Prova disso é que, já “crescidinho” dentro da mídia e com um aparato empresarial e técnico cada vez mais sofisticado, Roberto Carlos lança, naquele mesmo ano (1964), o primeiro megadisco da história do rock nacional: É proibido fumar, enterrando de vez qualquer tentativa de frear o avanço do gênero no país, tamanha a quantidade de sucessos que o álbum emplacou: “É proibido fumar”, “O calhambeque”, “Um leão está solto nas ruas”, “Rosinha”, “Broto do jacaré”, “Jura-me”, “Nasci para chorar” – e por aí vai...
Mas, certamente, o fator crucial que convenceu não apenas Roberto, mas, como já dito, toda a indústria fonográfica brasileira, de que essa era mesmo a onda do momento, não foi outro, senão o sucesso de “Rua Augusta”, que abriu as portas para toda uma talentosa, entusiasmada e batalhadora geração de jovens artistas, não mais vinculada às elites acadêmicas, econômicas ou sociais do país, a exemplo do que já havia sido visto entre os garotos de Ipanema, durante a eclosão da Bossa Nova; e seria visto um pouco mais tarde, através de alguns membros do Tropicalismo.
Nada disso, certamente, descredencia esses dois movimentos dentro da história da Música Popular Brasileira, mas também não esconde sua posição incômoda frente à Jovem Guarda, com a qual sempre foram ressabiados, sobretudo, por conta de sua imensa popularidade. Por isso mesmo, como prova de um dos mais entranhados casos de “inveja” da história de nossa música, a Jovem Guarda foi (e ainda é!) taxada de “alienada” por muita gente, que se dizia “contrária ao sistema”, mas, na verdade, sobreviveu (e alguns ainda sobrevivem) deitada à sombra desse mesmo “sistema”!
Mas, voltando ao disco, é claro que o apelo massivo a versões e covers configura uma tentativa de capitalizar, ao máximo, o sucesso de “Rua Augusta” e alavancar de vez a carreira de Ronnie — objetivos que, infelizmente, não foram atingidos, apesar de o resultado ter sido bastante satisfatório, graças, sobretudo, ao desempenho do cantor e à escolha cirúrgica do repertório, que incorpora clássicos como “My Bonnie”, “Veludo azul”, “Viva Las Vegas”, “Roberta”, ”Brotinho difícil”, “Biquini de bolinha amarelinha tão pequenininho”, entre outros, que, mesmo não tendo garantido a Ronnie a longevidade desejada, ratificam, sem sombra de dúvidas, seu papel de fundador.
Tudo isso, diga-se de passagem, muito antes de o programa Jovem Guarda ir ao ar em 22 de agosto de 1965, para encerrar suas atividades em 24 de outubro de 1968, após sofrer o golpe fatal que foi a saída de Roberto Carlos, em 17 de janeiro de 1968.
Desse modo, mal chegado o ano de 1969, o movimento musical alavancado por Ronnie Cord, popularizado por Roberto Carlos e reverenciado por gerações de roqueiros, chegava ao fim.